Perú: crónicas de uma viagem em bicicleta

Tudo começa com os improvisos de última hora, que cada vez mais se estendem pela noite dentro. Embalámos as bicicletas para voarem, orgulhosos das estratégias que fomos aperfeiçoando ao longo das últimas viagens. Nas embalagens de cartão, cabem, para além de algumas ferramentas básicas, os alforges e algumas roupas que são estrategicamente acondicionadas para protegerem as partes mais sensíveis das bicicletas recém desmontadas. Os pneus vão vazios devido às variações de pressão. Relembramos as coisas que não podemos esquecer, mas acima de tudo aquelas que são desnecessárias e que afinal podem ficar em casa para não pesarem nas pernas ao longo das 3 semanas.

Não levamos planos connosco, ao chegar a Lima entregamo-nos ao baile de rua, misturamo-nos com os salseiros e bachateiros locais e recolhemos informações. Deixamos que nos desenhem mentalmente o que vai ser o nosso destino nos próximos dias.

Deslumbramo-nos com a grandiosidade e modernidade da cidade e com a presença de ciclovias seguras e bem sinalizadas.

Em viagem, levamos poucas regras connosco: “Ter cuidado com a segurança dos alimentos que ingerimos.”, “Não pedalar de noite.”. São todas para infringir! Deliciamo-nos com deliciosos ceviches, corvina frita, maíz, lomo saltado, anticuchos e tudo que todos os vendedores de rua ou lugares duvidosos anunciem. E, claro, levamos todo o tipo de luzes e refletores. Pedalando à noite pelo deserto, chegamos a Huacachina. Huacachina é um oásis e é igual a todos os oásis que imaginamos e desenhamos na escola.  Depois de gastarmos as energias a fazer sandboarding, o pôr do sol mais cor de laranja em anos. As imagens são estonteantes, retiradas de Marte ou de algum cenário de ficção científica.

Inspirados pelos Diários de Che Guevara, enveredamos pela Panamericana numa travessia ao deserto. À medida que os km se acumulam, o sol a pique e os cuidados também. Levamos agora mais de 6 litros de água cada um e as garrafas bem embrulhadas em toalhas para não sobreaquecerem. As camadas de protetor solar tornam-se mais espessas, as golas servem para tapar o rosto do sol e das poeiras da estrada, as roupas leves de verão, ao segundo dia, passam a parecer má ideia e depressa aprendemos que cobrir a pele com roupa é a melhor proteção de todas. Aprendemos também que no meio do deserto não há rede. Os pontos de paragem para nos abrigarmos do sol e reabastecermos de água identificáveis no Google Maps não são necessariamente reais, nem a aplicação tem o mesmo tipo de fiabilidade nestas regiões.

30 Km antes da saída do deserto, conhecemos o El Parça, o homem que colocou água e sombra no deserto. Emigrou da Colômbia, vende água e folhas de coca a camionistas cansados e agora oferece dois lugares à sombra a ciclistas sequiosos.

No Vale Sagrado, as mudanças de paisagem e de clima não se revelam necessariamente mais fáceis. Atingidos pelo “mal de altura” sentimos as dificuldades em respirar e os problemas digestivos. A água e o verde são agora abundantes. A viagem passa a exigir paragens obrigatórias e abrigos criativos até que as chuvas se dissipem.

Já desconfiávamos, mas os Andes dão-nos a certeza: todas as subidas se fazem, desde que com paciência e o ritmo certo; e quando restam dúvidas, os cães que protegem os caminhos e terreiros, mostram-nos o extra de energia que ainda temos escondido e desconhecíamos.

A Natureza ensina-nos que nenhum esforço é inglório e presenteia-nos com um duplo arco-íris sobre a as nuvens e sobre a montanha. As descidas começam.

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