Manual de sobrevivência para peões e velocípedes

  1. Ter sempre presente que o carro tem prioridade, seja qual for a situação. Se alguém vai de carro é porque tem muita pressa, enquanto quem vai de bicicleta ou a pé tem todo o tempo do mundo e, como tal, tem de ceder a passagem em todas as situações;
  2. Antes de atravessar, o velocípede e o peão devem olhar doze vezes para a esquerda e para a direita, enquanto acenam aos condutores que se aproximam. Convém lembrar que o condutor pode, para poupar os discos do travão, optar por não parar totalmente e contornar o peão assim que este estiver no meio da passadeira. Idealmente, para poupar o transtorno de parar o carro, o condutor simplesmente pode fazer uso da sua prioridade e acelerar furiosamente para passar antes do peão ou do velocípede;
  3. Ter em consideração que vigora um sistema de pontos, que premeia os condutores pelos estacionamentos mais originais, pelo que é frequente encontrar veículos em segunda ou mesmo em terceira fila, em exposição sobre os passeios, em cima de passadeiras ou até metade dentro do portão de uma escola. Quanto mais excêntrico, mais pontos, pelo que o peão ou o velocípede deve aplaudir, de cada vez que tem oportunidade de ver;
  4. Tanto velocípedes como peões devem evitar andar nos passeios, nas estradas, e também nas ciclovias, uma vez que todos os espaços são, antes de mais nada, estacionamento para automóveis (se possível, os peões e velocípedes devem ficar em casa, para não atrapalhar!)

Este manual de sobrevivência é uma sátira – talvez seja redundante dizê-lo mas, uma vez que se assemelha à realidade, é preferível ser redundante. É fácil ignorar e até rir das pequenas infrações dos condutores. Estaciona-se no passeio “só cinco minutos”, olha-se para o telemóvel “porque era muito urgente”, para-se o carro em cima da passadeira “só desta vez” e, de justificação em justificação, torna-se as viagens de quem se desloca a pé ou de bicicleta numa perigosa gincana.

É obrigação de quem governa criar condições para que as pessoas convivam em sociedade de forma pacífica e saudável. E claramente que no que concerne à mobilidade, a coexistência pacífica de várias possibilidades não é uma opção. No entanto, também é verdade que de nada nos valem as regras, as leis, se não houver empatia e alguma abnegação. Empatia no sentido de nos conectarmos com o outro, compreendendo as suas necessidades e emoções. Abnegação no sentido de nos desprendermos das nossas próprias urgências para garantir a liberdade e os direitos dos nossos vizinhos.

Este manual de sobrevivência é uma sátira escrita por alguém que por vezes é peão e velocípede e outras vezes condutor. Não tem qualquer intenção de antagonizar uns ou outros, mas sim, despertar o leitor para o impacto que têm os condutores dos carros para a sensação de segurança (muitas vezes de medo e frustração!) de quem anda a pé e de bicicleta.

Ninguém deveria precisar de um manual de sobrevivência, porque a cidade e as ruas são, apenas, para viver!

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