Acelerar as cidades: O século da bicicleta

“Você é um fundamentalista, um extremista!”, grita alguém quando, numa troca de ideias sobre mobilidade, se vê desarmado pelos argumentos que demonstram a eficácia e eficiência da bicicleta nas deslocações da cidade. E quando esta acusação é feita, vale sempre a pena lembrar que hoje as nossas cidades são dedicadas praticamente em exclusivo ao automóvel, havendo um extremismo exacerbado, de tal modo que se consegue desculpar tudo, até as mais de 500 mortes por ano provocadas por esta máquina do século passado, que é o automóvel.

Não defendo que todas as deslocações nas cidades devem ser feitas em bicicleta. Como também não defendo que devem ser todas feitas com recurso ao carro. A verdade é que a era do automóvel dominador nas cidades terminou. Mas, para isso se notar efetivamente, não basta convidar as pessoas a mudar o “chip” e passar a utilizar a bicicleta em detrimento do carro, ou ensinar os alunos na escola a pedalar para poderem ir para a escola sozinhos. Nenhum pai deixará o filho ir para a escola sozinho se este tiver de utilizar uma rua, dentro dos limites da cidade, onde as velocidades registadas são superiores às permitidas até em autoestrada.

A aposta na sensibilização nas escolas é importante, fundamental até, mas a sua comparação com o que foi feito no mesmo sentido para a reciclagem não é séria. Isto porque, quando se aplicou nas escolas o programa da reciclagem e o Gervásio nas televisões demorava apenas alguns minutos a separar o lixo e acertar no caixote, a infraestrutura adequada para a separação dos resíduos estava colocada nas cidades. Ou seja, as cidades primeiro prepararam-se para a reciclagem e só depois ensinaram a reciclar. O contrário seria só gastar energia.

Também não se pode justificar a falta de investimento na reorganização das vias com a falta de pessoas a utilizar a bicicleta. Isto porque, enquanto não tivermos uma cidade com infraestruturas adequadas e seguras para a utilização da bicicleta, não vamos ter mais do que 3% de pessoas a utilizar a bicicleta nas cidades. Nos anos 50, quando em Braga se começaram a abrir grandes Avenidas com 4 e 6 vias numa altura, o número de pessoas que possuía um carro na cidade contava-se pelos dedos. Ainda assim construiu-se e convidou-se à sua utilização, marginalizando as pessoas que andavam noutros modos de transporte e/ou a pé, retirando-lhes até o direito de atravessar a rua de um lado para o outro.

Os decisores já deviam ter percebido que as pessoas querem poder optar, em segurança, pelo modo de transporte mais adequado à sua deslocação. E, se já se aperceberam disso, deviam, então, estar a reorganizar as suas ruas para permitir às pessoas uma escolha em segurança. Sem grandes conselhos ou grupos de trabalho a mastigar os diagnósticos. É preciso executar e é preciso fazê-lo já!

É preciso reduzir efectivamente as velocidades nas cidades, implementando medidas de acalmia de tráfego em toda a cidade, e não apenas nos bairros residenciais de forma isolada. É preciso criar redes cicláveis a sério. Não desenhar e construir “nas sobras”. É preciso pegar numa rua, manter ou fazer crescer o passeio, dedicando esse espaço só e apenas ao peão, e, depois, pegar na faixa de rodagem e reorganiza-la ou acalma-la. E tanto podemos pegar numa Avenida 31 de Janeiro e Avenida da Liberdade e gastar 3 milhões, como podemos, numa primeira fase, gastar 150 mil euros e organizar a faixa de rodagem para receber bicicletas, transportes públicos e carros, tudo isto deixando imaculados os passeios, onde o peão deve ser rei e ver-se livre, sobretudo, dos carros mal estacionados, que invadiram as cidades e ocupam todo o espaço que lhes é dado. Mas também é preciso evitar que pessoas de bicicleta, trotinetes, skates circulem nos passeios. Para isso, é preciso garantir que a circulação na faixa de rodagem é segura e não é um risco que pode levar à morte – que é o que acontece hoje.

Hoje, ainda não é seguro utilizar a bicicleta nas nossas cidades. É possível, mas ainda não há condições de segurança nas nossas ruas. É por isso importante começar já a fazer alterações, ora com repinturas e balizamentos das ruas – que são intervenções baratas –, ora com intervenções de fundo que levam a desvios de redes e alterações profundas ao perfil da rua.

As metas traçadas até 2025 e 2030, quer a nível local, quer a nível nacional, só serão alcançáveis com uma reorganização das nossas ruas. Manter tudo igual e convidar as pessoas a utilizar a bicicleta, ou pintar passeios de vermelho e dizer que se tem ciclovias não vai fazer com que o número de utilizadores cresça. É preciso levar a sério a bicicleta, porque esta, em conjunto com o transporte público, as trotinetes, os patins, os skates e outros modos de mobilidade ativa e suave, são o futuro das cidades em termos de mobilidade. Esquecer ou reduzir a importância da bicicleta no sistema de transportes de uma cidade será o maior erro do século.

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